São as calorias que nos movem?

Hoje em dia, a alimentação e a nutrição são um saber comum e todos nós nos desafiamos a falar sobre estes temas no dia-a-dia. Como nutricionista tenho o dever de alertar que nem tudo o que lemos é correcto, e apenas nos devemos guiar pela informação proveniente de fontes com base científica.  
Antes de tentar responder à pergunta que coloco como título deste artigo, quero esclarecer alguns conceitos, que talvez não estejam assim tão claros como imaginam.

O que é a caloria e a sua história de vida?
Afinal de contas, todos falamos de calorias, muitos de nós olhamos para os rótulos dos alimentos e identificamos a linha fatal, o valor mais temido: a Energia (kcal), mas será que são apenas as calorias que nos devem preocupar? Aliás, saberemos o que é realmente a caloria? A palavra caloria é originária do latim do termo “calor”, sendo simplesmente considerada uma unidade de calor ou uma unidade de energia. Em termos históricos a caloria foi definida como a quantidade de energia necessária para elevar em 1 grau celsius a temperatura de 1 grama de água.
Podemos falar em vários nomes da História, sem os quais, não se saberia o que hoje se sabe sobre nutrição; entre eles estão Hipócrates, que destacou o papel da alimentação na saúde, Lavoisier, que foi quem nos deu a conhecer os aparelhos que medem a quantidade de calor envolvida numa reacção química (os calorímetros), e ainda, Marx Rubner e Atwater que nos trouxeram respostas sobre o valor calórico dos alimentos. Hoje em dia usam-se os factores de conversão de Atwater para saber a quantas calorias equivale uma determinada quantidade de proteínas, hidratos de carbono e gordura e é a partir daí que nós calculamos a energia que consumimos:

Tabela 1: Quantidade de energia existente em 1 grama (g) de Proteína, Hidratos de Carbono, Gorduras/Lípidos e Álcool(1).


Será que podemos olhar apenas para as calorias?
Esta quantidade de energia que calculámos (usando estes factores) não vai corresponder exactamente à mesma que nós, efectivamente, armazenamos e absorvemos, isto é à energia que metabolizamos. Os macronutrientes (proteína, hidratos de carbono e gordura) têm um efeito térmico diferente entre eles. O efeito térmico dos alimentos é a energia que o organismo gasta a digerir e a armazenar o que comemos. Cada macronutriente tem efeitos térmicos diferentes (1):

Tabela 2: Efeito térmico dos macronutrientes Proteína, Hidratos de Carbono e Gordura/Lípidos(1).


Com isto percebe-se que apesar de o número de calorias que se obtém a partir 10 g de proteína ou 10 g de hidratos de carbono ser a mesma, o que é efectivamente digerido e armazenado no nosso organismo vai ser diferente. No caso de 100 g de proteína (400 kcal), vamos ter 280 kcal disponíveis e no caso de 100 g de hidratos de carbono (400 kcal) vamos ter 360 kcal. Ainda, 400 kcal de gordura (aproximadamente 44 g) vão resultar em 388 kcal disponíveis. Por esta razão é que a composição das nossas refeições e dos nossos alimentos é tão importante, e não podemos olhar apenas para as calorias. Podemos, sim, optar por olhar mais para o tipo de alimentos que escolhemos e sobretudo para a quantidade destes mesmos alimentos. Ou seja, quando queremos perder peso não nos basta ingerir alimentos com um perfil de nutrientes saudável mas para além disso temos que garantir que a quantidade de energia que ingerimos não é maior do que o suposto, porque se ingerirmos mais (e não a gastarmos) o balanço energético não vai ser equilibrado, noutras palavras, vamos adquirir mais peso. 

- Gorduras, Hidratos de Carbono, ou Proteínas? 
- Todos, em equilíbrio!
Além destas duas considerações temos ainda que nos lembrar que a nossa dieta deve ser equilibrada. Estes três nutrientes existem e devem ser consumidos de forma balanceada; as recomendações são de que um indivíduo adulto saudável deva ingerir cerca de 55-75% da energia total/dia em hidratos de carbono, 15-35% em gordura e quanto às proteínas as recomendações são de 0,66 g/kg de peso por dia (2–4). 
Assim, para percebermos a que equivalem estas percentagens, e considerando um plano alimentar com uma energia total para 1 dia de 2000 kcal para um adulto de 70 kg, a distribuição em macronutrientes poderá (pois a distribuição de cada nutriente deve sempre ser aconselhado pelo nutricionista que tem em conta a individualidade da pessoa em questão) ser a seguinte: 325 g de hidratos de carbono (65%), 46 g de proteína e 56 g de gordura. Estas recomendações mostram-nos que não é sensato seguir dietas que são muito pobres num dos macronutrientes, pois inevitavelmente vão obrigar a uma ingestão maior de outros nutrientes, tornando-as desequilibradas. De uma forma geral, todas as dietas que vamos ouvindo falar resultam a curto prazo na perda de peso, isto porque, de um modo geral, há sempre uma redução da energia e como foi dito acima, no final das contas se o valor de energia ingerido for menor que o gasto o peso vai diminuir. Mas isto não implica que estas dietas sejam, na sua essência, equilibradas e saudáveis, em termos nutricionais. Muitas não são. Todos os nutrientes têm funções importantes. A principal função associada aos hidratos de carbono é o fornecimento de energia, sendo a glicose a principal fonte de energia do cérebro, medula, rins e eritrócitos. A glicose é sem dúvida o nosso principal combustível. As gorduras assumem a função principal de reserva e estrutural no nosso organismo. Já a proteína assume um papel importante na reparação e manutenção, bem como na formação de anticorpos. Em suma, todos devem ser considerados e nenhum deles desprezados da nossa dieta diária. 

Uma das razões porque que o mesmo plano alimentar tem um impacto diferente em duas pessoas.
É ainda importante ter em conta que o mesmo alimento vai ter um efeito diferente consoante a pessoa que o consome, daí nem todos termos os mesmos resultados quando seguimos padrões alimentares semelhantes. Isto deve-se à nossa individualidade, ao nosso metabolismo, e em grande parte à nossa flora microbiana, por outras palavras às bactérias que habitam o nosso intestino. Estas bactérias não são sempre as mesmas nem estão presentes nas mesmas quantidades, está estudado que há mesmo uma variação da microflora provocada por diferentes razões. A microflora consegue adaptar-se e pode ser alterada se consumirmos alguns alimentos que têm vindo a demonstrar potenciais benefícios nesta modulação, nesta alteração do nosso ecossistema intestinal(5).

E afinal… “São as calorias que nos movem?”
Postas todas estas considerações, estamos agora em posição de responder à questão que coloquei no título deste artigo: Sim, as calorias são de facto importantes pois são determinantes na variação de peso corporal, no entanto a qualidade dos nutrientes que a constituem é imprescindível; importa SIM ter em atenção o número de calorias dos alimentos que consumimos (lembrando que o que efetivamente digerimos e armazenados não é exactamente coincidente com o que nos dizem os rótulos), mas NÃO devemos olhar para os alimentos como se de calorias apenas se tratassem, porque o alimento é uma matriz muito complexa e reduzir a análise apenas a energia é muito limitador e pode levar a falsas interpretações. 
E aqui sim há muita matéria científica que nos diz que o maior consumo de frutas, hortícolas, cereais integrais (mais ricos em fibra), menor consumo de produtos de origem animal traz efectivamente benefícios à saúde. Para terminar, aconselho à leitura de um artigo muito interessante sobre este tema, o qual também me inspirou na escrita que hoje partilho convosco. Podem consultá-lo aqui.

MENSAGENS A RETER
  • Os macronutrientes fornecem diferentes quantidades de energia;
  • Os macronutrientes (proteína, hidratos de carbono e gordura) têm um efeito térmico diferente entre eles; 
  • O efeito térmico dos alimentos é a energia que o organismo gasta a digerir e a armazenar o que comemos;
  • A composição das nossas refeições, isto é os diferentes alimentos que consumidos e a forma como os consumimos, é extremamente importante;
  • As recomendações de ingestão para um adulto saudável de cada macronutriente são as seguintes: 55-75% da energia total/dia em hidratos de carbono, 15-35% em gordura e de 0,66 g de proteína/kg de peso por dia;
  • Todos os nutrientes têm funções importantes e insubstituíveis;
  • A nossa individualidade, o nosso metabolismo, e a nossa flora microbiana influenciam o impacto que os alimentos têm em cada um de nós;
  • Importa SIM ter em atenção o número de calorias dos alimentos que consumimos, mas NÃO devemos olhar para os alimentos como se de calorias apenas se tratassem, porque o alimento é uma matriz muito complexa e reduzir a análise apenas a energia é muito limitador.
     

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Mahan, L. K. & Escott-Stump, S. Krause’s Food & Nutrition Therapy. (Saunders Elsevier, 2008).
2. Food and Agricutural Organization. Human energy requirements: Report of a Joint FAO/WHO/UNU Expert Consultation. FAO Food Nutr. Tech. Rep. Ser. 0, 96 (2001).
3. WHO/FAO/UNU Expert Consultation. Protein and amino acid requirements in human nutrition. World Health Organ. Tech. Rep. Ser. 1–265 (2007). doi:ISBN 92 4 120935 6
4. World Health Organization & Uauy, R. E. A. Fats and fatty acids in human nutrition, Report of an expert consultation. FAO, Food and Nutrition Paper 91, (2008).
5. Umu, O. C. O., Rudi, K. & Diep, D. B. Modulation of the gut microbiota by prebiotic fibres and bacteriocins. Microb. Ecol. Health Dis. 28, 1 (2017).

Por:
Catarina Vila Real, Nutricionista (2009N)
Nota: Por opção da autora, a redacção deste artigo não segue o novo acordo ortográfico.